Como o título
deste artigo sugere, examinarei nesta oportunidade a
complexa relação que se estabelece entre o instituto da Substituição Tributária
e o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições
devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte — Simples, que deixa
atônito justamente aquele contribuinte que a Constituição Federal (CF) busca
proteger com a criação de um regime de recolhimento de tributos que seja pouco
oneroso e de fácil aplicação.
Como se
sabe, a Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, alterou o artigo
146 da CF, para determinar que “cabe à lei complementar estabelecer normas
gerais relativas à instituição de um regime único de arrecadação dos impostos e
contribuições da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios,
observado que (…) o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição
da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será
imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento” (grifei).
Buscou-se, assim,
em nível constitucional, prever a criação de um regime que, diferentemente do
que ocorre, em regra, com o sistema tributário nacional, fosse unificado e
regido por regras simples, objetivas e de fácil compreensão, e que,
consequentemente, trouxesse para a Economiaaparente os pequenos
empreendimentos ocultos nas sombras da informalidade.
Na sua forma
atual, esse regime se encontra regido pela Lei Complementar (LC) 123,
de 14 de dezembro de 2006.
Embora essa lei
reafirme o mandamento constitucional de que a sistemática por ela criada deva
consistir em um “regime único de arrecadação”, em seu artigo 13, parágrafo 1º,
ela estabelece diversas exceções a essa unicidade, entre elas,
aquela referente ao ICMS devido pelo regime de substituição tributária.
A substituição
tributária prospectiva, diferentemente do modelo regressivo, não acarreta apenas
a atribuição de responsabilidade a terceiro. Ela também obriga o recolhimento
do tributo anteriormente à ocorrência do respectivo fato gerador. Em outras
palavras, há para o substituto a obrigação originária
de recolher antecipadamente o tributo incidente nas “operações subsequentes”.
O instituto da
substituição tributária prospectiva sempre foi alvo de críticas pela maior
parte da doutrina especializada, que o considerava inconstitucional, por
ofensa, entre outros, aos seguintes princípios:
I) da tipicidade
e, consequentemente, da segurança jurídica, pois o surgimento da obrigação
tributária teria que estar inafastavelmente condicionado à materialização da
hipótese de incidência, não podendo se fundamentar na presunção da ocorrência
de fatos futuros;
II) da capacidade
contributiva e da vedação ao confisco, pois somente após a ocorrência do fato
gerador seria possível aferir riqueza tributável,
não se admitindo a tributação de riqueza presumida;
III) da isonomia,
pois, se a operação fosse realizada por valor menor do que o estimado, a alíquota
real incidente na operação seria maior do que a prevista em lei, o que
colocaria o contribuinte em situação de desigualdade desvantajosa em relação
aos demais;
IV) da competência
exclusiva da União para a instituição de empréstimo compulsório, pois, também
na hipótese em que a operação fosse realizada por montante menor do que o
estimado, teria havido antecipação de valores à Fazenda Pública Estadual para
posterior devolução, o que atribuiria à exação a natureza daquele empréstimo.
Apesar da relevância
dos argumentos acima, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 213.396-SP,
de que foi relator o ministro Ilmar Galvão, a 1ª Turma do STF decidiu pela
constitucionalidade da substituição tributária prospectiva, conforme se
verifica no exame da ementa do acórdão, abaixo transcrito:
“TRIBUTÁRIO. ICMS.
ESTADO DE SÃO PAULO. COMÉRCIO DE VEÍCULOS NOVOS. ART. 155, § 2°, XII, B, DA
CF/88. CONVÊNIOS ICM N° 66/88 (ART. 25) E ICMS N° 107/89. ART. 80, INC. XIII E
§ 4°, DA LEI PAULISTA N° 6.374/89. (…) A
responsabilidade, como substituto, no caso, foi imposta, por lei, como medida
de política fiscal, autorizada pela Constituição, não havendo que se falar em
exigência tributária despida de fato gerador. Acórdão que se afastou desse
entendimento. Recurso conhecido e provido.” (Primeira Turma, 02.08.1999, DJ de
01.12.2000, p. 97)
Esse entendimento
se mantém inalterado até a presente data, e foi reproduzido em diversas
decisões recentes (inclusive da 2ª Turma). A título ilustrativo, transcrevo uma
das diversas ementas:
“AGRAVO REGIMENTAL
EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA.
CONSTITUCIONALIDADE. RECEPÇÃO DO DECRETO-LEI 406/1968 E CONVÊNIOS ESTADUAIS. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é
firme no sentido de que é constitucional o regime de substituição tributária de
ICMS pago antecipadamente, mesmo antes da EC 3/1993. Isso porque a
disciplina desse instituto jurídico decorre da recepção do Decreto-Lei 406/1968
e dos convênios estaduais celebrados com suporte no § 8º do art. 34 do
ADCT, até a edição da LC 87/1996. Precedentes. 2. Agravo regimental
desprovido.” (RE 428364 AgR/AM, Relator Min. AYRES BRITTO, 13/12/2011)
É, portanto,
jurisprudência pacífica que o regime de substituição tributária é válido.
Mas, seria ele
compatível com as regras que regem o Simples?
Como visto acima,
a competência outorgada pela CF está condicionada a que o regime especial a ser
criado institua um sistema unificado de recolhimento dos tributos, não havendo
qualquer autorização para que lei complementar institua exceções a tal regra
que impliquem tornar o contribuinte sujeito a outras incidências que não aquela
unificada, expressamente prevista.
Nem se diga que,
na substituição tributária, o substituto recolhe tributos cuja obrigação
tributária nasce na mão de terceiros e que, portanto, o respectivo pagamento
não prejudicaria a unificação de recolhimento acima referida.
De fato, como
antes visto, o regime de substituição tributária prospectiva implica atribuição
de responsabilidade a terceiro (contribuinte substituto) desde o momento da
ocorrência do respectivo fato gerador, excluindo-se a responsabilidade do
contribuinte substituído. Em outras palavras e de acordo com a melhor doutrina,
a obrigação do substituto tributário é própria; ela nasce já em suas mãos, e
não nas do substituído.
Logo, é
flagrantemente inconstitucional a exceção imposta pela LC 123/06 ao
regime unificado de recolhimento de tributos.
Nos acórdãos que
existem sobre a matéria específica, a questão jamais foi examinada sob esse
aspecto (o da inconstitucionalidade do artigo 13, parágrafo 1º, da LC
123/06).
Pelo contrário, ao
examinar questão similar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a
“unicidade” do Simples não comportaria exceções.
À época do fato
objeto desse julgamento, o Simples era disciplinado pela Lei 9.317, de 5 de
dezembro de 1996, que garantia às empresas nele enquadradas o direito ao
pagamento unificado dos tributos devidos.
Durante a vigência
dessa norma, foi editada a Lei 9.711, de 20 de novembro de 1998,
que formulou, em seu artigo 23, a seguinte exigência: “A empresa contratante de Serviçosexecutados
mediante cessão de mão-de-obra, deverá reter onze por cento do valor bruto da
nota fiscal ou fatura de prestação de Serviços e recolher a
importância retida até o dia dois do mês subsequente ao da emissão da
respectiva nota fiscal ou fatura (…).”
Ao analisar o
caso, o STJ entendeu que as disposições da Lei 9.711/98 não
poderiam alcançar as pessoas jurídicas enquadradas no Simples, uma vez que elas
teriam direito ao pagamento unificado dos tributos devidos.
Eis parte da
ementa da decisão proferida pela 1ª Seção do STJ:
“TRIBUTÁRIO.
CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO OPTANTES PELO
SIMPLES. RETENÇÃO DE 11% SOBRE FATURAS. ILEGITIMIDADE DA EXIGÊNCIA.
1. …
2. O sistema de
arrecadação destinado aos optantes do SIMPLES não é compatível com o regime de
substituição tributária imposto pelo art. 31 da Lei 8.212/91, que constitui
“nova sistemática de recolhimento” daquela mesma contribuição destinada à
Seguridade Social.A retenção, pelo tomador de serviços, de contribuição sobre o
mesmo título e com a mesma finalidade, na forma imposta pelo art. 31 da Lei
8.212/91 e no percentual de 11%, implica supressão do benefício de pagamento
unificado destinado às pequenas e microempresas.
3. Aplica-se, na
espécie, o princípio da especialidade, visto que há incompatibilidade técnica
entre a sistemática de arrecadação da contribuição previdenciária instituída
pela Lei 9.711/98, que elegeu as empresas tomadoras de serviço como
responsáveis tributários pela retenção de 11% sobre o valor bruto da nota
fiscal, e o regime de unificação de tributos do SIMPLES, adotado pelas pequenas
e microempresas (Lei 9.317/96).
4. Embargos de
divergência a que se nega provimento.” (Grifamos)
(Embargos de
Divergência em Recurso Especial – EREsp n° 511.001-MG, Primeira Seção do STJ,
Ministro Relator Teori Albino Zavascki, DJe de 11.04.2005).
Esse entendimento
foi, inclusive, sumulado pelo STJ, da seguinte forma:
“A retenção da
contribuição para a seguridade social pelo tomador do serviço não se aplica às
empresas optantes pelo Simples.” (Súmula 425 do STJ, de 10.03.2010)
Ora, se a mera
previsão em lei da necessidade de “pagamento unificado” foi suficiente para que
o STJ afastasse a obrigação de reter a contribuição previdenciária exigida por
lei posterior, não pode haver dúvida de que, agora, com disposição
constitucional expressa no mesmo sentido, os contribuintes inscritos no Simples
não podem ser submetidos às regras de substituição tributária,
independentemente do que disponha a LC 123/06.
Em suma, o Simples
não pode ser complexo!
É mandatório,
repito, que o Legislativo e, principalmente, o Judiciário façam com que esse regime
atenda à sua principal finalidade, que, como dito, é a de atrair para a Economia aparente
os pequenos empreendimentos que, hoje, sobrevivem às margens da formalidade.
Submetê-los às
regras de substituição tributária, além de ferir a Constituição, gera efeito
diametralmente oposto ao acima referido.
Fonte: Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário